Junho é o mais cruel dos meses?
 



Cronicas

Junho é o mais cruel dos meses?

Rhuan Alencar


Tomás Elias sempre se intrigou com os dias nebulosos da capital paulista. Certa vez me relatou que o cinza do chão parecia refletir o cinza do céu. Veio de uma terra onde o sol andava a tiracolo e o céu carregado era sinônimo de inspiração. Entretanto, na terra da garoa, o Seu Elias, como se apresentava, ainda não havia se sentido entusiasmado com tais paisagens climáticas.

Conheci Seu Elias ao solicitar um serviço de telefonia para minha casa. Entrou falante, contando sua história enquanto realizava a labuta. Nunca fui de dar muita atenção a esse tipo de conversa amistosa, mas ele narrava de uma outra forma, me fazia lembrar o Riobaldo do Grande Sertão: Veredas. Simples e profundo. Filosofava como tomava água e nem se dava conta disso. Quando ele falava, parecia que estava num divã tirando o sono do analista. Por esse motivo, passei a contratá-lo para qualquer tipo de serviço técnico (ele fazia diversos bicos para complementar a renda). Era muito bom ouvi-lo.

Seu Elias adorava o mês de maio. As folhas caindo, o sol com o ventinho gelado, o azul do horizonte. Dizia que São Paulo é a melhor cidade do mundo em um domingo de outono. Em sua infância, costumava empinar pipa nesse mesmo período. Os ventos sopravam com facilidade, a rabiola dançava no espaço, a linha flutuava encurvada… Um dia lhe perguntei se não sentia saudades de sua cidade. "Depois que a gente muda o/de lugar, o passado vira uma pedra que a gente arremessa e vira pássaro, e ela volta para comer em nossa mão". Ainda divagando sobre o tempo, ele me disse, consertando um vazamento, que tinha a impressão de que o presente não existia, pois o passado tomava de conta da sua cabeça e o futuro sempre olhava de rabo de olho, esperando por dias melhores.

O rapaz começou a visitar minha casa semanalmente. Eu avaliava todo tipo de coisa para ter sua companhia: uma pia rachada, um chuveiro dava choque, um vazamento na privada, a fiação frágil. Sua presença era mais catártica que a do meu analista. Levei esse ponto para uma das sessões e senti meu terapeuta tentando disfarçar seu ciúme. Interpelou com uma pergunta sobre meu pai. Na primeira frase ele me cortou com um "até semana que vem".

Agachado no canto da sala para instalar uma tomada, Seu Elias me conta que, desde que havia se mudado para cá (e lá se vão cinco anos), todo mês de junho lhe acontecia algo ruim. Ele adoecia, alguém próximo falecia, era roubado. Comentei que isso não existia, que era coisa da sua imaginação. Respondeu que não era uma pessoa muito espiritual, mas que devia ter alguma coisa ali, algum tipo de energia, vai saber.

Certo dia, lhe enviei uma mensagem e fiquei sem resposta. Fiquei preocupado a tal ponto que me desloquei até seu endereço, um bairro mais afastado do centro, mas próximo da linha do trem. Cheguei num sobrado e perguntei por ele. Uma moça desconfiada me disse apenas que ele havia voltado. Como assim, voltado? Como ousa sumir sem me avisar? Não deixou um bilhete, um aceno, um abraço? Permaneci chateado por um tempo.

Segui meus dias com essas perguntas, que foram amansando e amansando até sumirem nas cãibras causadas por aquela gélida semana. Os meteorologistas afirmavam que era o início de inverno mais frio dos últimos noventa anos. Eu estava coberto da cabeça aos pés, mudando os canais da TV aleatoriamente, quando paro num telejornal. Um repórter entrevista um grupo de jovens. Vejo um rapaz passar em velocidade na frente da câmera. É o Seu Elias? Me levanto do sofá, torcendo para que o jornalista vá em seu encalço, mas nada acontece. Fiquei curioso para ver seu nome na barrinha colorida com o logo da emissora: "Tomás Elias, encanador", ou seria "Tomás Elias, filósofo-aventureiro das metrópoles"? Nunca saberei. O que sei é que vez ou outra ainda me pego travando longas conversas com Tomás. Ele havia entrado definitivamente em meu lar.


Rhuan Alencar graduou-se em Psicologia, mas não chegou a exercer a profissão. Escreve poemas, crônicas e contos desde a adolescência. É funcionário público na área financeira e atualmente reside na cidade de São Paulo. Participa do Curso Online de Formação de Escritores

 

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